Os rostos de obreiros que levantam a Marcha Gualteriana
Fique a conhecer as pessoas que estão a trabalhar para mais uma edição da Marcha Gualteriana, a sair às ruas de Guimarães na noite da próxima segunda-feira (22h00).
Há 112 anos que as portas do mês de agosto se abrem com as Festas Gualterianas, na Cidade de Guimarães. Uma história que teve origem no movimento de “Caixeiros” (empregados de comércio) e ficou enraizada nas origens dos vimaranenses. Na agenda da primeira segunda-feira de agosto a Marcha sai à rua, onde milhares de pessoas se perfilam para vislumbrar os majestosos enfeites dos carros alegóricos, gracejar com os números vivos de comédia e sentir um pouco da tradição de Guimarães. Esse é o momento de “alívio” e “felicidade pura” para as dezenas de obreiros que, durante meses a fio, trabalham arduamente e dedicam-se de “paixão e alma” para levantar a Marcha Gualteriana.
A direção da Associação Artística da Marcha Gualteriana é composta por sete elementos. A novidade chama-se Florbela Costa, a primeira mulher a fazer parte da direção. A presidir está José Pontes, 63 anos, eletricista aposentado e durante anos também se dedicou à causa dos bombeiros. Hoje é o homem do leme, dedicando-se a uma causa que abraçou há 44 anos. A contagem decrescente para o grande dia já começou e as horas de sono são cada vez menos. José Pontes vive intensamente a preparação da Marcha, atento a todos os pormenores. Este ano a ansiedade aumenta com a preocupação de iniciar uma hora mais cedo (22h00).
“Há sempre alguma pressão pelo facto da marcha sair uma hora mais cedo. É a primeira vez que acontece e alguns dos obreiros têm de jantar mais rápido nesse dia, terá de ser tudo a correr e cumprir a saída”, avisa José Pontes, sem criar expetativa. “Ninguém pode dizer se resulta, ou não, antes de experimentar. Vamos ver como corre este ano, depois fazemos uma avaliação”, aponta, com cautelas.
A preocupação com os obreiros – aqueles que trabalham para colocar a Marcha em pé – está sempre presente nas palavras de José Pontes. “Hoje em dia é muito difícil arranjar jovens para trabalhar na Marcha e as pessoas que se encontram cá estão a ficar com uma idade avançada e, naturalmente, mais cansadas”, salienta apreensivo, deixando um apelo a “uma renovação” para “chamar a gente mais jovem”.
A confeção da Marcha Gualteriana começa por volta março/abril, quatro meses antes do grande dia, sem descurar o trabalho nos meses anteriores em retirar os pregos e limpeza das madeiras usadas nas edições anteriores. “Há gente que vem de manhã trabalhar e outros à tarde, num total de 70 a 80 obreiros que se dedicam por gosto”.
João Nobre e Carlos Gonçalves, são dois dos Obreiros da Marcha Gualteriana
Na porta da entrada da Associação, estende-se um tecido branco com cerca de 5 metros por cima de uma plataforma de madeira. Dali vai nascer mais uma “obra de arte” com um toque de João Nobre, 81 anos, e Carlos Gonçalves, 76 anos. O primeiro assume-se orgulhosamente como o “obreiro mais antigo”. Ambos já foram Presidentes da Associação, por mais que uma vez, e continuam a dar o exemplo para manter acesa a tradição. João Nobre conta com 65 anos de ligação à Marcha e recorda, por exemplo, que a sua primeira participação na Marcha foi vestido de Afonso Albuquerque, no “carro da Índia”, em 1954, e teve intervenção para a escritura da atual casa da Associação no início da década de 60. O antigo “caixeiro” de profissão, Carlos Gonçalves, lembra que os trabalhos funcionavam na sede do Sindicato dos Caixeiros, na rua da Rainha.
Salvador Silva é o "criativo" e foi condecorado com a Medalha Municipal de Mérito Artístico
Outro dos obreiros históricos é Salvador Silva, 66 anos, “o criativo” da marcha que foi contemplado com a Medalha Municipal de Mérito Artístico em 2017. Aos 68 anos continua a ser o principal “desenhador” dos carros alegóricos, pois “não há risco que não seja eu que faça” como o próprio afiança numa conversa a rondar os tempos nostálgicos. Com apenas 16 anos, fruto da observação dos trabalhos, já tinha conquistado a confiança dos responsáveis para assumir o desenho da Marcha. É, assim, uma presença assídua nestes trabalhos desde 1966 e até mesmo quando estava a cumprir serviço militar, em Braga, chegou a retirar tempo para se dedicar à preparação da Marcha. Cumpriu a antiga 4ª classe de escolaridade e tem uma vida dedicada à arte da carpintaria.
Pantaleão considera que foi na Casa da Marcha que aprendeu tudo
Entre os mais velhos dos obreiros está Pantaleão, de 70 anos. Entrou neste mundo por curiosidade e desejo, mas recorda que foi “difícil” justificando que “só os caixeiros é que entravam”. Valeu a confiança depositada pelo Presidente da Associação na altura, Fonseca Ferreira. “Comecei por ajudar nos desenhos e criação dos números vivos” sendo também o responsável pela “criação das sátiras” ao longo de vários anos, sempre atento aos momentos da atualidade. Entre vários momentos, em que também foi Presidente da Associação, recorda o convívio com Mário Soares – enquanto Primeiro Ministro – quando visitou as Festas Gualterianas. Com orgulho cheio, Pantaleão partilha que “tenho a formação da vida e a formação da Casa da Marcha, foi aqui que aprendi tudo”.
João Almeida integrou a Associação Artística da Marcha Gualteriana em 2006
Esta festa que já ultrapassou o século de vida conquistou os vimaranenses e aqueles que vieram de fora. Exemplo disso é o de João Almeida, Presidente da Associação da Marcha Gualteriana (2009-2014) e hoje assume as funções de tesoureiro na atual direção. Natural de Marco de Canaveses, está radicado na Cidade Berço desde 1974 mas só em 2006 é que entrou na direção da Marcha Gualteriana a convite de amigos, quando já estava aposentado. “Nunca imaginei que estaria ligado a esta associação, mas hoje sinto este espírito como qualquer outro colega e estou presente todos os dias para ajudar no que é necessário. Passamos por alguns momentos mais conturbados, mas nunca deixamos de erguer esta marcha”, refere João Almeida, de 72 anos.
Estes são apenas alguns dos rostos num grupo de várias dezenas de obreiros que trabalham na sombra para erguer aquele que é considerado o “momento alto” das Festas da Cidade. São exemplos de vida e dedicação, responsáveis por uma tradição secular em Guimarães e sempre com um sentimento de partilha porque as Marchas Gualterianas não são suas, mas são de todos.