Neutralidade, Imparcialidade e Gestão Limitada dos Órgãos Autárquicos em Período Eleitoral: O que está em causa?

A Constituição de República Portuguesa (CRP), ao determinar que “A organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais”, instituiu-as como um dos suportes essenciais do Estado de direito democrático. A CRP concebeu as Autarquias Locais como “pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas”.
A autonomia das Autarquias Locais, assim reconhecida, encontra-se salvaguardada pelo facto de o Estado exercer tutela puramente inspetiva e legalmente distinguida sobre a sua gestão patrimonial e financeira. A legitimidade das decisões dos órgãos das Autarquias Locais assenta numa eleição por sufrágio universal, direto e secreto dos titulares dos respetivos órgãos.
O método de representação proporcional de Hondt constitui o critério de distribuição de mandatos e lugares pelas diversas listas, que se apresentam à eleição para as Autarquias Locais e que contemplam a eleição simultânea dos três órgãos a eleger: Assembleia Municipal, Câmara Municipal e Assembleias de Freguesia.
O Decreto n.º 8/2025, de 14 de julho, fixou a data de 12 de outubro de 2025 para realização das próximas eleições gerais para os órgãos representativos das autarquias locais, em todo o território nacional.
Com a marcação de eleições, entram em vigor regras especiais que se aplicam em período eleitoral – o período entre a marcação das eleições e o ato eleitoral –, e que limitam a atuação das Autarquias Locais e seus titulares, impondo uma conduta de neutralidade e imparcialidade às entidades públicas, dirimindo, assim, a prática de certas condutas que possam contrariar uma gestão autárquica isenta e responsável.
O Supremo Tribunal de Justiça (STJ), no seu Acórdão de 5/02/2025, identifica e estrutura os padrões de conduta em que se desdobram estes deveres de neutralidade e imparcialidade, e que devem ser observados por parte das entidades abrangidas, da seguinte forma: “O cumprimento dos deveres de neutralidade e imparcialidade por parte das entidades abrangidas significa: - Atuar com total objetividade, sem se deixar influenciar por considerações de ordem subjetiva pessoal ou interesses estranhos ao interesse público; - Prosseguir em exclusivo o interesse público, estando impedida a prossecução de outros interesses que não sejam os interesses públicos postos por lei a seu cargo; - Total isenção na prossecução do interesse público de forma a garantir o exercício desinteressado das respetivas funções; - Independência perante as forças partidárias e os interesses das candidaturas, bem como de outros grupos de pressão ou interesses privados. Com este imperativo legal procura-se garantir, por um lado, a igualdade de oportunidade e de tratamento entre as diversas candidaturas e, por outro lado, que não existam interferências exteriores no processo de formação da vontade dos cidadãos para o livre exercício do direito de voto.”
O dever de neutralidade, consagrado no artigo 41.º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (LEOAL), refere que os órgãos das Autarquias Locais e os respetivos titulares não podem intervir, direta ou indiretamente, na campanha eleitoral, nem praticar atos que, de algum modo, favoreçam ou prejudiquem uma candidatura ou uma entidade proponente em detrimento ou vantagem de outra, devendo assegurar a igualdade de tratamento e a imparcialidade em qualquer intervenção no exercício das suas funções, nomeadamente nos procedimentos eleitorais.
O STJ refere, ainda, que aquele dever de neutralidade “não impede o exercício normal das funções que cabem às entidades públicas, designadamente, órgãos das autarquias locais, nem impede os seus titulares de fazerem as declarações que tenham por convenientes, sobre os assuntos que lhes digam respeito, desde que de forma objetiva.”
Deste modo, está subjacente que estes deveres da neutralidade e imparcialidade assumem particular importância em matéria de publicações autárquicas que, de acordo com o referido artigo, consubstancia-se na imposição de uma moderação editorial, cingindo-se ao básico e essencial.
Assim, a partir da data da publicação do decreto que fixou a data da eleição – 14 de julho de 2025 –, e até ao próximo dia 12 de outubro de 2025, inclusive, é proibida a publicidade institucional por parte dos órgãos das autarquias locais de atos, programas, obras ou serviços, salvo em caso de grave e urgente necessidade pública, conforme prescreve a Lei nº 72-A/2015, de 23 de julho, que estabelece o regime jurídico da cobertura jornalística em período eleitoral pelos órgãos de comunicação social e regula a propaganda eleitoral através de meios de publicidade comercial. A Comissão Nacional de Eleições é a entidade a quem cabe, no exercício da sua competência, assegurar a igualdade de oportunidades de ação e propaganda das candidaturas durante as campanhas eleitorais, bem como receber queixas sobre neutralidade e imparcialidade das entidades públicas e sobre publicidade institucional (entidades públicas).
Deste modo, transpondo estas regras para a realidade do Município de Guimarães e para a forma como habitualmente comunica as suas ações, ficam vedadas quaisquer comunicações que extravasem a mera informação - objetiva e circunscrita aos moldes habituais - sobre eventos ou decisões cujo conhecimento público seja considerado inadiável e relevante para o conjunto dos cidadãos.
Em ano de termo de mandato autárquico e de realização da eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais começa a surgir a dúvida se existe alguma limitação à atividade destes órgãos municipais.
A Lei n.º 47/2005, de 29 de agosto, estabelece o regime de gestão limitada para os órgãos das autarquias locais e seus titulares, limitando o quadro de competências dos órgãos e dos eleitos locais no período que medeia entre a realização das eleições autárquicas e a data de instalação dos novos órgãos eleitos, ficando circunscrito apenas à prática dos atos correntes e inadiáveis, cuja justificação de urgência deve constar do ato ou da informação que o suporta.
Assim, este diploma consagra, no seu n.º 1 do art.º 2.º, como causas de impedimento, a prática de determinados atos (deliberações e decisões) pelos órgãos autárquicos (Câmara e Assembleia Municipal), bem como aos respetivos titulares (Presidente e Vereadores), em relação às matérias elencadas nas alíneas a) a v) do n.º 1 do mesmo art.º 2º, onde se encontram as competências próprias da Assembleia Municipal, da Câmara Municipal e do Presidente da Câmara.
No período de gestão, os órgãos e os seus titulares que tenham competências próprias – como o Presidente da Câmara – ficam impedidos de deliberar ou decidir em relação a todas as matérias que não sejam de gestão corrente ou inadiáveis.
Dado que a lei procede a uma enunciação exemplificativa, nas várias alíneas deste artigo, das matérias que não são de gestão corrente, estão abrangidos no impedimento outras matérias e atos de natureza semelhante que, embora não constando daquelas alíneas, não podem, igualmente, ser considerados atos de gestão corrente.
De acordo com o n.º 1 do art.º 3.º deste diploma legal, durante o período de gestão caducam as delegações de competência que tenham sido aprovadas pela Câmara Municipal para o Presidente da Câmara.
Certo é, porém, que também no exercício das competências próprias, o Presidente da Câmara fica impedido de decidir nas matérias constantes das alíneas referidas no n.º 1 do art.º 2.º.
Igualmente os vereadores não podem decidir em matérias de competências subdelegadas, apenas podendo decidir no uso das competências delegadas e desde que não estejam abrangidas pelas matérias constantes das alíneas referidas no n.º 1 do art.º 2.º.
Estas limitações visam evitar decisões de última hora que possam ter impacto eleitoral ou comprometer a atuação dos futuros titulares do cargo.
Assim, enquanto que o regime de gestão limitada se destina a impedir que os autarcas exerçam as suas competências de forma abusiva no período que medeia entre a eleição e a instalação dos novos órgãos autárquicos, já o regime do artigo 41.º da LEOAL funciona especificamente para o período eleitoral - tempo em que prolifera propaganda eleitoral e é necessário garantir que a gestão autárquica não pratica atos que, de forma direta ou indireta, sejam passíveis de se confundir com essa propaganda ou servir os seus fins (imediatos ou últimos).
Num Estado de Direito democrático, a isenção e a imparcialidade das entidades públicas durante os períodos eleitorais são pilares essenciais para garantir a confiança dos cidadãos no processo eleitoral, pelo que o cumprimento rigoroso do regime de gestão limitada e da neutralidade institucional não é apenas uma exigência legal, mas um dever ético de respeito pelo pluralismo político e pela integridade democrática.
Tatiana Vicente
Técnica Superior
Direção Municipal de Serviços Partilhados