JURISPRUDÊNCIA
Contencioso pré-contratual. Contratação pública. Causas de exclusão. Concorrência. Indícios sérios.
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 07/12/2023 - Processo n.º 0275/22.4BECTB
Sumaria este acórdão o seguinte:
I – A adequada interpretação do que constituem os “fortes indícios de atos, acordos, práticas ou informações suscetíveis de falsear as regras de concorrência,” previstos no artº 70º nº 2, al. g) do CCP, tem de reportar-se às características exigidas pelo direito e jurisprudência comunitários, devendo, pois, ser considerados como tal aqueles que se mostrem objectivos e concordantes no sentido da demonstração da falta de autonomia e independência das propostas – cfr. Acórdão TJUE proferido em 17/5/2018, Proc. C-531/16, ECLI:EU:C:2018:324, «Specializuotas transportas» UAB, nº 37 “No que respeita ao nível de prova exigido para demonstrar a existência de propostas que não são autónomas nem independentes, o princípio da efetividade exige que a prova de uma violação das regras de adjudicação de contratos públicos da União possa ser feita não apenas através de provas diretas mas também através de indícios, desde que estes sejam objetivos e concordantes e que os proponentes interligados estejam em condições de apresentarem prova em sentido contrário (v., por analogia, Acórdão de 21 de janeiro de 2016, Eturas e o., C-74/14, EU:C:2016:42, n.º 37).
II - Conforme resulta da jurisprudência do TJUE, a referida causa de exclusão não pressupõe a prática de um ilícito concorrencial punível nos termos da Lei da Concorrência, mas sim a violação dos princípios da transparência e da igualdade de tratamento no domínio da contratação pública, como se sublinhou no recente acórdão proferido em 15/9/2022, no Proc. nº C-416/21, Landkreis Aichach-Friedberg c/ J. Sch. Omnibusunternehmen, ECLI:EU:C:2022:689:“59 Em particular, no caso de proponentes interligados, o princípio da igualdade de tratamento previsto no artigo 36.º, n.º 1, da Diretiva 2014/25 seria violado caso se admitisse que estes proponentes podem apresentar propostas coordenadas ou concertadas, isto é, não autónomas nem independentes, suscetíveis de lhes conferir vantagens injustificadas relativamente aos outros proponentes (v., por analogia, Acórdão de 17 de maio de 2018, Specializuotas transportas, C-531/16, EU:C:2018:324, n.º 29).”
III - Os múltiplos indícios recolhidos nos autos através da análise das propostas são claramente objectivos e concordantes, abrangendo, para além de aspectos formais, igualmente aspectos substanciais, decorrentes não apenas do facto de serem os mesmos os administradores de ambas as empresas, mas também do conteúdo do texto das propostas, as quais apresentam os parágrafos escritos da introdução inicial e da saudação final com uma redacção absolutamente igual e os mesmos erros ortográficos, tudo indubitavelmente revelador da falta de autonomia e independência das mesmas – constituindo assim os fortes indícios a que se reporta o fundamento de exclusão constante do artº 70º nº 2 al. g) do CCP.
IV - A jurisprudência do TJUE tem vindo a manter o entendimento de admissibilidade de apresentação de propostas por empresas em relação de domínio ou de grupo, impondo a sua não exclusão automática, mas impondo igualmente que as mesmas tenham a possibilidade de demonstrar e demonstrem efectivamente que a sua relação de grupo não impediu a formulação de propostas autónomas e independentes.
V – Em momento anterior à decisão de exclusão, após ter sido notificada do entendimento do júri, no âmbito do 1º relatório final, a recorrente teve efectiva oportunidade de se pronunciar sobre os indícios recolhidos e de apresentar prova em sentido contrário, através do exercício do seu direito de audiência prévia, direito que exerceu, sem ter logrado afastar tais indícios – pelo que tal exclusão não pode considerar-se automática, nem viola o princípio da proporcionalidade.
Pré-contratual. Empreitada. Plano de Trabalhos. Suficiência e Adequação. Termos e condições.
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 23/11/2023 - Processo n.º 196/22.0BELRA
Destacamos o sumário deste acórdão:
I - Nos termos previstos no art.º 57.º, n.º 2, al. b) do CCP, estando em causa um procedimento de formação de contrato de empreitada, a proposta deve, necessariamente, conter um plano de trabalhos, tal como definido no art.º 361.º, quando o caderno de encargos seja integrado por um projeto de execução.
II - Por seu turno, o art.º 361.º do mesmo CCP estipula que o plano de trabalhos destina-se, com respeito pelo prazo de execução da obra, à fixação da sequência e dos prazos parciais de execução de cada uma das espécies de trabalhos previstos e à especificação dos meios com que o empreiteiro se propõe executá-los, bem como à definição do correspondente plano de pagamentos.
III - Tais exigências apresentam-se absolutamente coerentes com as determinações legalmente impostas para a conformação do caderno de encargos em procedimento concursal com vista à celebração de um contrato de empreitada, pois que, como decorre do estatuído no art.º 43.º, n.ºs 1 e 4 do CCP, o caderno de encargos de procedimento atinente à formação de contrato de empreitada deve incluir um projeto de execução, que deve ser acompanhado, imprescindivelmente, da descrição dos trabalhos preparatórios e acessórios e de uma lista completa de todas as espécies de trabalhos necessários à execução da obra a realizar e do respetivo mapa de quantidades.
IV - Como facilmente se alcança, as exigências legais enunciadas encontram sentido, num primeiro plano, na necessidade de permitir ao empreiteiro prever e programar de modo adequado, realista e eficiente a execução da empreitada, quer no que respeita às espécies de trabalhos, quer no que respeita a quantidades, meios a alocar e ao prazo, apresentando, assim, a sua melhor proposta.
V - Num segundo plano, as mesmas exigências servirão ao dono da obra para fiscalizar e acompanhar a execução da empreitada, controlando o cumprimento dos prazos, a execução pontual dos trabalhos, os meios humanos e equipamentos empregues, possibilitando, dessa forma, que o dono da obra possa exercitar os respetivos poderes de direção e fiscalização da obra, bem como, sendo caso disso, os seus poderes sancionatórios (vg. aplicação de multas contratuais, rescisão).
VI - Estão em causa, por conseguinte, exigências procedimentais que não são despiciendas ou inócuas, visto que os elementos em causa constituem os instrumentos primaciais para alcançar a boa execução da empreitada concursada e permitir ao dono da obra o acompanhamento da execução dos trabalhos, controlando escrupulosamente a progressão dos mesmos e o cumprimento do projeto de execução, e, quando for caso disso, libertar os pagamentos dos trabalhos ao ritmo das medições dos trabalhos executados.
VII - É, aliás, por estas razões, que o legislador não se satisfaz, nem se limita a impor a apresentação de um qualquer cronograma de trabalhos, antes descrevendo, com alguma minúcia, o conteúdo do plano de trabalhos almejado, que deve integrar as propostas dos concorrentes.
VIII - No concurso em discussão nos autos, um dos documentos que, obrigatoriamente, teria de constar das propostas dos concorrentes era, precisamente, o «Plano de Trabalhos sob a forma de diagrama de barras, plano de Mão de Obra e plano de Equipamento».
IX - O plano de trabalhos que integra a proposta da Recorrida adjudicada não contém a descrição das espécies de trabalhos, limitando-se a construir uma cronologia da previsão da execução da obra através da enunciação de rubricas genéricas.
X - A sentença recorrida considerou, apesar de tudo, que as omissões e défices patenteados no plano de trabalhos não prejudicavam a execução dos trabalhos da empreitada, sobretudo, porque o Recorrido Município poderia, ao abrigo do previsto na cláusula 7.ª do Caderno de Encargos (em diante, somente CE)- e nos termos também do art.º 357.º do CCP-, solicitar à Recorrida um plano de trabalhos ajustado, o que permitiria, portanto, à Recorrida corrigir o plano de trabalhos em conformidade com os ditames do art.º 361.º, n.º 1 do CCP, apresentando um novo plano de trabalhos, desta feita, construído a partir da consideração das espécies de trabalhos a executar.
XI - Mas o raciocínio plasmado na sentença padece de uma verdadeira petitio principii, e que reside na circunstância de a sentença recorrida considerar que o plano de trabalhos contido na proposta da Recorrida não prejudica a execução do contrato, nem a fiscalização da empreitada, mas, do mesmo passo, afirmar que a ausência de prejuízo deriva da possibilidade de o dito plano de trabalhos poder ser reformulado, dando origem a um plano de trabalhos ajustado, por forma a cumprir as exigências legais relativamente à formulação do mesmo.
XII - Este percurso fundamentador apresenta-se, evidentemente, incoerente e irracional, pois, ou o plano de trabalhos constante da proposta é, apesar das suas omissões, adequado e suficiente a cumprir as finalidades que serve- programar adequadamente os trabalhos e permitir o controlo e fiscalização do andamento da execução dos trabalhos-, caso em que a proposta não deve ser excluída; ou o plano de trabalhos não contém uma programação adequada dos trabalhos e, por isso, não permite um acompanhamento idóneo da evolução da execução dos trabalhos da obra, caso em que a proposta deve ser excluída por afronta ao estatuído nos art.ºs 57.º, n.º 2, al. b) e 361.º, n.º 1 do CCP.
XIII - No caso posto, o plano de trabalhos está diretamente relacionado com os termos ou condições do contrato de empreitada concursado, sendo demonstrativo e ilustrativo de aspetos da execução do contrato relacionados com o prazo de execução da empreitada e com as espécies e quantidades de trabalhos a executar, o que remete imediatamente para o projeto de execução da obra, e para o mapa de trabalhos e quantidades, que constituem aspetos da execução do contrato não submetidos à concorrência, aos quais o Recorrido Município pretende que os concorrentes se vinculem.
XIV - Deriva do que vem de se dizer que, estando em causa termos ou condições da proposta exigidos pelas peças do procedimento, o seu o cumprimento deve desvelar-se no teor da própria proposta, não sendo admissível a correção de tais aspetos cruciais, através do suprimentos de omissões, após a adjudicação e a celebração do contrato.
XV - De resto, nem as omissões do plano de trabalhos, se respeitantes a termos ou condições que não tenham sido submetidas à concorrência- como no caso dos autos-, podem ser objeto de correção em sede de procedimento concursal, sob pena de violação do disposto no art.º 72.º, n.º 2 do CCP (na versão aplicável ao procedimento concursal em discussão nos autos), uma vez que, admitir-se tal corresponderia a admitir-se o suprimento de uma omissão que é conducente à exclusão de uma proposta de acordo com o art.º 70.º, n.º 2, al. a) do CCP.
XVI - A situação de apresentação de um plano de trabalhos, que omite elementos indispensáveis à compreensão da programação previsional dos trabalhos a executar na obra e ao acompanhamento e fiscalização da evolução da execução desses trabalhos, não pode deixar de considerar-se como equivalente à falta de apresentação do plano de trabalhos.
XVII - E, assim sendo, a proposta que inclui um plano de trabalhos de tal jaez deve ser excluída logo no momento procedimental próprio, e não, como parece ser o entendimento do Tribunal recorrido, admitida para que, após a adjudicação e a celebração do contrato possa ser apresentado um novo plano de trabalhos- o”plano ajustado”- por forma a cumprir exigências que deveriam estar satisfeitas logo na proposta.
XVIII - E, além disso, também o plano de equipamento não especifica os meios com que se prevê executar as espécies de trabalhos previstos na empreitada, uma vez que se encontra construído de modo genérico, sem referenciar-se a tipos de trabalhos ou espécies de trabalhos, isto é, sem qualquer especificação dos meios para além dos veículos/ maquinaria pesada e contentores, visto que, a utilização da designação de “ferramentas” não contém, em si mesma, qualquer especificação.
XIX - Sendo assim, também este plano de equipamento não corresponde ao pretendido, e que é, como dimana do disposto o art.º 361.º, n.º 1 do CCP, a «especificação dos meios com que o empreiteiro se propõe» a executar as «espécies de trabalho previstas».