JURISPRUDÊNCIA
Procedimento disciplinar. Processo criminal. Valor extra processual da prova. Direito de audiência e defesa.
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 30/03/2023, Processo n.º 0988/18.5BELSB
Sumaria este acórdão o seguinte:
I – É válida a importação para o procedimento disciplinar – onde são admissíveis todas as provas não proibidas por lei - de prova produzida no processo criminal em que esteja em causa a averiguação dos mesmos factos (por natureza, os de maior gravidade), pois é esse o entendimento mais conforme à prossecução do interesse público a que a Administração Pública está constitucionalmente vinculada em qualquer das suas atividades, sendo a própria lei processual penal que outorga, expressamente para fins de “instrução de processo disciplinar de natureza púbica”, o uso do material probatório colhido em processo-crime, ainda que em segredo de justiça (art. 86º nº 11 do CPP).
II – Tal não infringe os direitos de audiência e defesa garantidos constitucionalmente ao arguido em procedimento sancionatório disciplinar (nos termos do nº 10 do art. 32º da CRP), desde que tal prova, como qualquer outra produzida ou recolhida no procedimento disciplinar, fique sujeita, designadamente na fase da defesa, ao necessário contraditório, podendo o arguido apresentar provas e requerer diligências probatórias tendentes a infirmar toda a prova que tenha sustentado a acusação.
Abono para falhas.
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 13/04/2023, Processo n.º 1307/13.2BESNT
A propósito do abono para falhas, entenderam os juízes desembargadores o seguinte:
I – O abono para falhas é um suplemento ou acréscimo remuneratório atribuído em função de uma particularidade específica da prestação de trabalho, que se traduz no manuseamento de dinheiro, caracterizando-se e justificando-se como um subsídio destinado a indemnizar funcionários e agentes pelas despesas e riscos inerentes a tal manuseamento que é suscetível de gerar falhas contabilísticas em operações de tesouraria.
II - O pagamento do abono para falhas no âmbito da Administração Local é regulado pelo Decreto-Lei n.º 4/89, de 06/01, o qual era, na sua versão inicial, aplicável apenas aos funcionários e agentes da administração central e dos institutos públicos que revestissem a natureza de serviços personalizados ou de fundos públicos (art.º 1.º, na redação originária).
Em qualquer caso, a Lei n.º 64-A/2008, de 31/12, que aprovou o Orçamento do Estado para 2009, alterou os art.ºs 1.º, 2.º e 4.º, do Decreto-Lei n.º 4/89, de 06/01 (cfr. o respetivo art.º 24.º), passando o art.º 1.º a estipular que este último diploma “é aplicável aos serviços da administração direta e indireta do Estado, bem como, com as adaptações respeitantes às competências dos correspondentes órgãos das autarquias locais, aos serviços das administrações autárquicas”.
III – Determina o Despacho n.º 15409/2009 que “têm direito ao suplemento designado «abono para falhas», regulado pelo Decreto-Lei n.º 4/89, de 6 de janeiro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 276/98, de 11 de setembro, e pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, os trabalhadores titulares da categoria de assistente técnico da carreira geral de assistente técnico que ocupem postos de trabalho que, de acordo com a caracterização constante do mapa de pessoal, se reportem às áreas de tesouraria ou cobrança que envolvam a responsabilidade inerente ao manuseamento ou guarda de valores, numerário, títulos ou documentos” (1.º parágrafo)
Acresce que, “nas autarquias locais, têm ainda direito ao suplemento a que se refere o número anterior os trabalhadores titulares da categoria de coordenador técnico da carreira de assistente técnico que se encontrem nas mesmas condições, bem como os titulares da categoria subsistente de tesoureiro-chefe” (2.º parágrafo)
V – Verificando-se que o Recorrente não é titular da categoria de assistente técnico da carreira geral de assistente técnico, não ocupa posto de trabalho que se reporte às áreas de tesouraria ou cobrança, nem se pode entender que o seu posto de trabalho, à luz do respetivo conteúdo funcional envolva predominantemente a responsabilidade inerente ao manuseamento ou guarda de valores, numerário, títulos ou documentos, a titulo predominante, não tem direito ao abono por falhas.
Pré-contratual. Preço anormalmente baixo.
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 23/03/2023, Processo n.º 3085/22.5 BELSB
Sumaria este acórdão que: “I – Não cabe à entidade adjudicante fiscalizar o cumprimento de normas que se destinam a regular as relações entre os concorrentes e os respetivos trabalhadores.
A proposta violadora do disposto no artigo 70.º, n.º 2, alínea f), do CCP, não é aquela cujos preços não refletem os custos salariais e sociais mas antes a que contém condição ou elemento contrários aos normativos legais e regulamentares em vigor, conduzindo a que o contrato celebrado, por aceitar essa incompatibilidade, desrespeite tais normativos.
II - Não se pode atender, em exclusivo, a um preço unitário referido numa proposta, quando este nem sequer integra diretamente o preço global da proposta, tal como este é discriminado, nos termos fixados pela entidade adjudicante.
O n.º 2 do artigo 71.º do CCP aplica-se ao preço global da proposta, e não a cada um dos preços unitários propostos, sendo que a lei apenas releva os preços anormalmente baixos dentro dos parâmetros globalmente definidos.
III – Não tendo sido feita prova cabal de que a proposta da Autora apresentasse um preço anormalmente baixo, à luz dos normativos aplicáveis, a saber, os artigos 1.º-A, n.º 2, 71.º, n.º 2, 70.º, n.º 2, alínea e) e 146.º, n.º 2, alínea o) do CCP, não pode a proposta ser excluída, pois que, mesmo que se entendesse que os valores remuneratórios unitários apresentados seriam baixos, essa circunstancia não deixaria de constituir um mero indicio da invocada violação, que não foi confirmado pelo conjunto da prova disponível. (cfr. Ac. TJUE de 28/1/2016, proc. T-570/13, “Agroconsulting”).”.
Contencioso pré-contratual. Aquisição de bens. Especificações do produto.
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 30/03/2023, Processo n.º 01576/21.4BEPRT
Acordaram os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal que: “I - Sem prejuízo da liberdade das entidades adjudicantes na estipulação das especificações técnicas, há limites que não podem ser ultrapassados, nomeadamente quando, através da excessiva pormenorização ou da natureza excessivamente restritiva das especificações técnicas estabelecidas, resulta entravada a concorrência e beneficiado determinado operador – tudo contra o legalmente imposto, a este propósito, no art. 42º nº 2 da Diretiva 2014/24, refletido no art. 49º nº 4 do CCP (cfr. Ac.TJUE de 25/10/2018, C-413/17, “Roche Lietuva”, considerandos 29 e segs.).
II - Aliás, nos casos excecionais em que apenas um operador esteja em condições de satisfazer as necessidades contratuais pretendidas, o procedimento adequado será, então, o do ajuste direto, nos termos do art. 24º nº 1 e) ii) do CCP, cumprindo à entidade adjudicante o ónus de especial fundamentação da inexistência de concorrência por motivos técnicos (nomeadamente, que “não exista alternativa ou substituto razoável” e que “a inexistência de concorrência não resulte de uma restrição desnecessária face aos aspetos do contrato a celebrar” – cfr. nº 7 do citado art. 24º).
III - Assim, sem se contestar a “ampla margem de apreciação das entidades adjudicantes no âmbito da formulação das especificações técnicas de um contrato”, não podem aquelas, na sua estipulação – como, no caso dos presentes autos, resulta dos factos provados - criar obstáculos injustificados à abertura dos contratos públicos à concorrência através de requisitos que favoreçam um operador económico específico ao refletirem as principais características dos fornecimentos, serviços ou obras habitualmente oferecidos pelo mesmo, devendo possibilitar-se, pelo contrário, a apresentação de propostas que reflitam a diversidade das soluções técnicas existentes no mercado.”.
Concurso de conceção. Relatório final. Audiência prévia.
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 19/04/2023, Processo n.º 02524/21.7BEPRT
Entendem os juízes do Supremo Tribunal Administrativo que “Na verdade, no âmbito do concurso de conceção nesta fase do procedimento não há lugar a audiência prévia, isto porque na solução legislativa desenhada para este tipo de procedimento concursal se entendeu que essa diligência afrontaria um princípio estruturante que decorre da lógica deste concurso , consagrado na disposição do n° 3, do artigo 219°-B, do Código dos Contratos Públicos, o anonimato.
E isso implica que a identidade dos concorrentes autores dos trabalhos de conceção apresentados só possa ser conhecida e revelada depois de elaborado o relatório a que se refere o n° 1, do artigo 219°-l, desse mesmo diploma, fase posterior àquela em que resultou da exclusão da proposta da Autora/Recorrida.”
Pré-contratual. Levantamento do efeito suspensivo automático.
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 27/04/2023, Processo n.º 2568/22.1BELSB-S1
Sumaria este acórdão o seguinte: “I – Nos termos da nova redacção dada ao nº 4 do artigo 103º-A do CPTA pela Lei nº 30/2021, de 21/5, dispõe-se agora que “o efeito suspensivo é levantado quando, devidamente ponderados todos os interesses públicos e privados em presença, os prejuízos que resultariam da sua manutenção se mostrem superiores aos que podem resultar do seu levantamento”.
II – Ou seja, o novo paradigma para o levantamento do efeito suspensivo automático leva-nos a fazer depender essa pretensão material (seja por iniciativa da entidade demandada, seja por iniciativa do contra-interessado) de um juízo de ponderação dos interesses público (da entidade demandada) e privados (do autor e/ou do contra-interessado) em presença, bastando que os danos que decorrem para o interesse público ou para os interesses do contra-interessado adjudicatário sejam superiores aqueles que podem advir, para o autor, da celebração e execução do contrato para o efeito suspensivo ser levantado.
III – Não repugna aceitar que constitui uma evidência que a suspensão de um acto de adjudicação praticado no âmbito de procedimentos de formação de contratos públicos perturbará sempre a prossecução do interesse público subjacente à decisão de contratar; porém, o que importa é aquilatar em que medida tal perturbação ocorre, a fim de saber se é de afastar o regime regra da suspensão automática dos efeitos da adjudicação, a levantar perante a verificação dos apontados requisitos, tanto mais que estando em causa uma prestação de serviços continuada, que não se quer ver interrompida, essa perturbação é clara.
IV – Compulsados os fundamentos nos quais a contra-interessada – e aqui recorrente – sustenta o levantamento do efeito suspensivo automático, melhor explicitados no § 14. supra, constata-se que esta não invoca qualquer prejuízo pessoal que para si advenha com a manutenção daquele efeito, limitando-se a invocar prejuízos que adviriam para a entidade adjudicante com a suspensão do acto de adjudicação.
V – A entidade adjudicante não veio requerer, “motu proprio”, o levantamento do efeito suspensivo automático, o que poderá ser entendido, pelo menos na sua perspectiva, como significando que a suspensão do acto de adjudicação ou da produção dos efeitos do contrato (caso o mesmo tenha, entretanto, sido celebrado) não constituirão fonte de prejuízos relevantes, susceptíveis de a impediria de prosseguir os seus fins nas duas unidades hospitalares em causa (cfr., a propósito, a solução consagrada no nº 5 do artigo 120º do CPTA, segundo a qual a falta de alegação, por parte da entidade requerida (entidade adjudicante, no caso dos autos), de que a adopção das providências cautelares pedidas prejudica o interesse público, o tribunal julga verificada a inexistência de tal lesão, salvo quando esta seja manifesta ou ostensiva). O que, transposto para o presente incidente, permitiria ao tribunal concluir que a manutenção do efeito suspensivo automático previsto no nº 1 do artigo 103º-A do CPTA não acarretaria prejuízos para a entidade adjudicante.
VI – Assim, perante os factos demonstrados, a ponderação racional e expressa, num juízo de prognose, da proporcionalidade entre os interesses da contra-interessada e os interesses da impugnante, é lícito concluir que os prejuízos que resultarão da retoma do prosseguimento do procedimento pré-contratual na fase pós-adjudicatória não se mostram superiores aos que decorrem da manutenção do efeito suspensivo, sendo, quando muito, equivalentes.
VII – Perante a inexistência de prejuízos para a contra-interessada – que não os invocou, limitando-se a invocar prejuízos que apenas se verificariam na esfera jurídica da entidade adjudicante –, e para a entidade adjudicante – que não veio requerer, “motu próprio”, o levantamento do efeito suspensivo automático – nenhuma ponderação criteriosa pode conduzir à conclusão que uns prevalecem sobre os demais, de forma a justificar o levantamento do efeito suspensivo automático do presente procedimento concursal”.