Património Mundial: passado, ou futuro?

Celebrámos no passado dia 13 de dezembro o vigésimo aniversário da inscrição do Centro Histórico de Guimarães na Lista do Património Mundial da Unesco. É um marco relevante na história contemporânea da nossa cidade por muitos motivos. Destaco dois: 1— Constitui o reconhecimento de que o Centro Histórico de Guimarães tem uma importância cultural tão excecional que transcende as fronteiras nacionais e reveste-se de importância comum para as atuais e futuras gerações de toda a humanidade. Como tal, a proteção permanente deste património é da mais alta importância para a comunidade internacional, como um todo.[1] 2— Guimarães mantém, por esta via, uma posição de destaque a nível internacional por fazer parte deste grupo restrito dos seis núcleos urbanos com reconhecido Valor Universal Excecional, em território português: Angra do Heroísmo (1983), Centro Histórico de Évora (1986), Paisagem Cultural de Sintra (1995), Centro Histórico do Porto (1996) e Elvas e suas Fortificações (2012).
Apresentar convincentemente, junto da comunidade internacional, um Bem de Valor Universal Excecional, é um processo longo e muito exigente. Assim foi, no final da década de noventa, e assim continua a ser. Talvez hoje seja ainda mais difícil porque há mais bens inscritos, os critérios são mais apertados, o número de candidaturas tem vindo a ser limitado, e a concorrência é cada vez maior. É, por isso, desafiante a tarefa de convencer a comunidade técnica e científica nacional, o Estado Português, os organismos internacionais; de que este Bem é tão especial, tão único, que lhe deve ser reconhecido o estatuto de Património Mundial.
A candidatura do Centro Histórico de Guimarães e Zona de Couros (extensão), que está pronta para seguir para o Centro do Património Mundial, em Paris, teve de cumprir esse desafio, de demonstrar que a Zona de Couros “merece” esse reconhecimento e que, assim, deve ser ampliada a área Património Mundial em Guimarães. Ampliada de uma forma significativa, duplicando a área classificada.
Quando iniciámos este processo, acreditávamos que a Zona de Couros, tal como a conhecemos, poderia merecer acolhimento porque não se conhecem casos similares, a nível da Europa, que testemunhem de uma forma tão evidente esta relação entre o Trabalho e a cidade histórica. Os tanques, as fábricas de curtumes, o rio de Couros e os regatos, os lajeados, as casas dos proprietários e as dos operários. Tudo isto faz parte de um sistema que é peculiar, incomum e, defendemos nós, único. Visite-se, por exemplo, o Centro Ciência-Viva, na antiga fábrica “Âncora”. Quantos edifícios parecidos conhecemos? Em Guimarães, ou em qualquer outra parte do mundo. Mas o facto de um edifício ser único não basta. Nem os tanques, nem as casas, nem o rio. É preciso demonstrar de que modo a Zona de Couros e o Centro Histórico relevam para a História da Humanidade. E nessa senda, que iniciamos apenas, muito temos vindo a descobrir que desconhecíamos à partida.
Hoje sabemos, por exemplo, que do conhecimento existente, até ao momento, [o despacho de abertura de classificação relativo a um conjunto de fábricas de curtumes, em Guimarães, datado de julho de 1977] constitui o primeiro despacho de abertura de classificação para um bem de natureza industrial no país.[2]
Sabemos agora que o testamento da fundadora do burgo, Mumadona Dias, ao mencionar o seu gado de criação sem conta [torna] inevitável pois associar a esta criação de gado a produção de curtumes, fruto da potencialização de recursos essenciais ao quotidiano destas populações.[3]
Sabemos muito mais e assim, inevitavelmente, cada vez temos mais certezas e dúvidas. É, por isso, cada vez mais sólido afirmar que nos passos iniciais da urbanização de Guimarães, a atividade de curtimenta já marcava presença no local que hoje designamos de Zona de Couros. À luz das informações de que dispomos hoje—e que não tínhamos há um par de anos atrás—o Prof. Arq. Bernardo Ferrão teria ilustrado de uma forma diferente a “primeira etapa” da evolução da forma urbana de Guimarães.
Pelo exposto se poderá entender a influência que um processo de candidatura, como o que estamos a defender junto da Unesco, pode ter impactos múltiplos. Não apenas na desejada aprovação pelo Comité do Património Mundial, mas também porque, pelo caminho, evoluímos, aprendendo com o passado e, por essa via, reconhecemos, cada vez mais, as especificidades, os traços identitários que tornam Guimarães única. Dito de outra forma: de que nos servirá ser Património Mundial, se não continuarmos a explorar os fundamentos da nossa responsabilidade [vimaranense]?
Ricardo Rodrigues
Chefe da Divisão do Centro Histórico.

Destaque da Zona de Couros (da responsabilidade do autor do artigo), sobre ilustração da autoria do Prof. Arq. Bernardo Ferrão, 1—A Bipolarização da Cidade (950—1279)”, desenvolvida no âmbito do processo de candidatura do Centro Histórico a Património Mundial, c. 1997-1999.
[1] Tradução livre do autor a partir do parágrafo 49. Outstanding Universal Value, das “Operational Guidelines for the Implementation of the World Heritage Convention”, WCH.21/01, 31 de julho de 2021.
[2] Deolinda Folgado, “Os curtumes, uma indústria em e de Guimarães. A constante (re)criação da identidade e da memória”, parte integrante do Processo de Candidatura do Centro Histórico de Guimarães e Zona de Couros (Extensão) ao Património Mundial, Anexos 2—Textos, Câmara Municipal de Guimarães, 2022.
[3] Rui Faria, “Os Couros vimaranenses. Um ofício, o espaço e suas gentes”, parte integrante do Processo de Candidatura do Centro Histórico de Guimarães e Zona de Couros (Extensão) ao Património Mundial, Anexos 2—Textos, Câmara Municipal de Guimarães, 2022.